Carreira Solo !

Carreira-solo !
Estamos falando de um tempo em que escrevíamos cartas e aguardávamos 30 dias para uma resposta…Tempo de orelhão com ficha, calça boca de sino, em que liamos O Despertar dos Magicos, Aldous Huxley e Hermann Hesse. Em que víamos sessões malditas de Godard, Antonioni e Pasolini, íamos a shows do Papa Poluição e Odair Cabeça de Poeta e ouvíamos Pink Floyd – Atom´s Hearth Mother até na abertura do Jornal Nacional, naTV em branco e preto… Um dia eu conto as peripécias da montagem de minha incrível banda, o Moto Perpetuo… Um outro dia… Por hoje, quero me debruçar sobre o período em que resolví seguir o meu destino de cantor popular….As últimas lembranças do Moto Perpetuo, pra mim, foram do famigerado Festival de Aguas Claras, Iacanga, num pasto de fazenda, repleto de hippies, bandas progressivas, barracas de acampar, comida comunitária, argh… com um cheiro misto de cebola-com-banana…Mulheres de pé sujo, de vestido de chita, dançando capoeira…”paranauê…paranauê, paraná….” as grandes bandas ali eram o Som Nosso, o Terço, muito Johnny B. Goode e o refrão Go, Johnny Go,Go,Go… Me lembro que éramos outsiders sofisticados, com um som misturando Clube da Esquina com Yes…Gentle Giant.. Desde a chegada na tal fazenda, o cheiro do “banheiro” era inacreditável…um valão, com umas tábuas formando um vão pras pessoas cagarem num buracão comunal, uma “trincheira de fezes”… Alguns hipongas procuravam “seres” no riacho, pra comerem…Esses bichos-grilo chegavam aos magotes , pelas estradas, como que remanescentes perdidos de um woodstock permanente…Acho que essa tribo até hoje continua perdida pelas estradas e até pouco tempo atrás ainda comparecia, junto com os crucifixos de Ozzy, sempre que havia um chamado similar de “festival ruralóide”…Nós nos apresentamos debaixo de vaias e críticas, até pela nossa postura…Eu vestí terno-e-gravata, com colete de casimira inglesa…pedante, de propósito, pra chocar aquela hipongaiada fracassada…A gente optou por nos hospedarmos em Iacanga, cidadezinha mais próxima, à beira da represa, em quartos limpos, com direito a sanduiches na padaria e sorvete de limão na pracinha…Comprei uma moringa de presente pra D.Hebe, minha mãe, que é natural da região – de Ibitinga. ( até hoje essa moringa está em cima da geladeira da mamãe….Me lembro que alguém da banda me criticou pela minha absoluta falta de “espírito de Woodstock”, de não querer ficar junto com a galera dos acampamentos…Realmente, me descobrí mesmo aristocrático e me perguntei o que eu estava fazendo ali…Em cima do palco, tratei de focar na luz forte do “canhão”, e aquela luz me acompanhou para o resto da vida. Até hoje eu vejo a mesmíssima luz. Ali, no palco do Festival jurei que, se alguém ali iria durar e fazer carreira, esse alguém com certeza seria eu. Bem, o fato é que depois daquele “desastre promissor” eu e o Cláudio tentamos algumas incursões de divulgação mais “realista”, fomos parar no “Almoço com as Estrelas” do Airton e Pepita Rodrigues…Subí as escadarias da Cantina Don Cicillo ( na Pompéia ) carregando um piano Fender que eu havia comprado do Antonio Adolfo, no Rio… Parte da banda não foi – Diógenes , o baterista, ( e acho que também o Egydio, o guitarrista ), se recusou a ceder à “breguice” do Brasil…Humm…Fui só eu, Cláudio e o baixista Gerson Tatini… Eu tinha certeza que precisávamos ( ou eu sonhava com isso) do Brasil dos auditórios, das trilhas de novela, etc.. Então havia uma grave cisão na banda. Eu percebí que eu estava querendo mesmo ir cantar na televisão. Me sentia artificialmente amarrado a uma banda, tinha muitas composições, e sabia que era um cara bonito que estava na flor da idade…Um problemão era eu compor em português, o que era tabu na época, pois todos os lançamentos estavam sendo em inglês… Cheguei até a visitar o Cesare Benvenutti, produtor de alguns desses lançamentos tipo “Tell me Once Again”, etc.. Mas não me animei a me lançar como mais um “fake” de americano…No final de 75, gravei uma fita de rolo, em 7 1/2 polegadas, tocando piano e cantando Meu Mundo e Nada Mais, Antes da Chuva Chegar, Pégaso Azul e outras musicas que eu tinha…Foi no Estudio Pauta um estúdio monoaural ( 1 só canal ), na Rua Major Quedinho, onde então conhecí o dono, o querido Luiz Arruda Botelho…Peguei algumas cópias dessa fita e tratei de espalhar pelas gravadoras da época : a RCA, na Rua Dona Veridiana, a Philips, numa casa da av. 9 de Julho, e a Som Livre, que ficava numa sala comercial na Rua Augusta, pertinho da esquina com a Estados Unidos. Me lembro que me sentei entre os demais “calouros”, pessoas humildes, pobres, como em qualquer sala de espera de calouros de TV… . Essa era uma situação típica da minha convicção especial, da minha intuição : aquele era um lugar desagradável, onde meus colegas, todos, sem exceção, jamais pisariam…Só eu. Provavelmente por isso dei certo…Pra mim, nunca teve mico nenhum… Era novembro de 75, fazia um calorão de verão em SP e eu estava perdendo mais um ano na FAU, não conseguia passar do primeiro ano de Arquitetura de jeito algum, eu estava ferrado – meu pai andava de saco cheio com minha insistência musical…Brigava todos os dias, me chamava de vagabundo. O Moto Perpétuo não havia resultado em nada que pudesse mudar a minha vida. Só dívidas, sonhos, pouca gratificação além da qualidade musical…Pobre de mim…Andava sem rumo, e perto de me matar. Cheguei a ir até o teto do prédio, e abrir os braços na beirada do precipício. Meus amigos da banda ficaram magoados com a minha desistência, minha revolta, minha saída, e me encaravam como um traidor. Pensando em tudo isso, ali na salinha de espera dos calouros da Som Livre…quase na hora do almoço, fui chamado por uma secretária, Sueli, e fui recebido por um jovem produtor de bigode, Otavio Augusto, conhecido como Pete Dunaway – que gravava baladas em inglês e tinha sido cantor do Memphis, uma famosa banda de bailes do Círculo Militar…Eu já havia ouvido falar dele, pois havia produzido o disco “Fruto Proibido”, o trabalho excelente que finalmente brindou com sucesso a carreira de Rita Lee, ídola-maior da minha geração…Bati um papinho com Otavio, contei que eu tinha tido uma banda, o Moto Perpétuo, e que queria me lançar em carreira-solo. Ele me ouviu, foi super-educado, mas não prometeu nada, só disse que ia ouvir. Dalí , voltei para a casa dos meus pais, para o meu cotidiano triste e angustiado de batalhas sem resultado…Minha mãe chamou pra irmos no Natal passar férias no Guarujá…e fui contrariado, passar umas semanas lá, eles tinham comprado um apartamento na praia de Pitangueiras , e eu adorava ir pra lá pescar e fazer minhas letras, sempre solitário…Já perto de Fevereiro, mamãe pediu pra eu dar um pulo em SP e apanhar umas contas de luz, água, telefone, pois estávamos na praia desde o Natal…Quando estou abrindo a porta do apartamento, o telefone está tocando no hall – atendí – era a tal Sueli, que falou “Graças a Deus – é o Guilherme ?” Eu disse-“ Sou, porque ? “ e ela– “Aqui é a Sueli, secretária do Toninho Paladino, da Som Livre – Estamos há quase um mês ligando pra você, não consigo te achar, você tem que vir na Som Livre imediatamente ! Sua música entrou na Novela das Sete e você precisa gravar imediatamente…etc..etc…” Não ouví mais nada. Dei um pulo tão alto que batí a cabeça no topo do batente da porta, quase desmaiei…Dei um grito monumental… A minha vida havia dado certo !
Novela da Globo ! Era tudo que eu queria !…Chorei muito ali, na casa da mamãe, sozinho, numa alegria incrível e solitária… Corrí então para a Som Livre. Chegando lá, fui recebido com muitos sorrisos e muitos abraços do Antonio Paladino, da Sueli, e do Otávio Augusto : eu estava com muita sorte, pois eu estava sendo visto como o “Elton John brasileiro” ( Elton fazia muito sucesso com GoodBye Yellow Brick Road” , Captain Fantastic, etc.. Me colocaram pra assinar um contrato fonográfico ( 5% de direitos fonográficos pra mim ) mas eu não seria tolo em questionar nada : essa era a oportunidade que eu sempre busquei ! Gravar um tema de novela em português…Eu sabia que isso representava tudo de uma vez … Me lembro também que a Paulista ainda estava em obras do Metrô ( um buracão enorme ) e dali eu liguei ( no orelhão ) para o Guto Graça Mello, que eu conhecia desde uma gravação com a Bibi Vogel ( uma parceria com ela – Amor de Hora Marcada ) em que fui para o Rio tocar piano no Estudio Havaí… Guto me pediu pra adaptar a letra ao personagem Rodrigo ( vivido por José Wilker ) que sofreria uma traição no inicio da novela, e aí a minha música se encaxaria… Troquei, na letra, “Me atirei no mundo, ví tudo mudar…” por “Quando fui ferido…” e ainda compus uma segunda parte “Não estou bem certo se ainda vou sorrir sem um travo de amargura…” E assim, finalmente, fui para o estúdio da Gazeta, ali na Paulista, onde Otavinho havia chamado Chico Medori ( o Chicão ) , um baita batera, o Claudio Bertrami no baixo, e eu, por lealdade e companheirismo, chamei o Claudio Lucci pra tocar o violão…No estúdio havia um piano Steinway de cauda, velhão, com um timbre metálico, maravilhoso…e tinha também um Elka Rhapsody teclado italiano de Strings e eletro- harpsichord , o que resultou imediatamente num hit fulminante…Me lembro da cara do Otavinho rindo pra mim : é sucesso ! é sucesso ! Realmente, Otavinho era um craque na produção… Na madrugada seguinte, um sábado, a música estaria pronta…E a carreira-solo decolou. Nunca mais a vida seria a mesma pra mim ! O resto, é história.

( 13 Set 2013 )