Classes de Intelectuais

A cultura de massa do século XX instituiu um sistema de classes altamente elaborado e questionável no panorama da intelectualidade do mundo. A industria cultural, a partir do surgimento do livro, e mais especialmente da imprensa, passa a ser codificada pelos critérios dos donos da opinião, os curadores : o jornalismo cultural estabelece uma Hierarquia de relevâncias, um jogo perverso de implicâncias e indulgências.

Nesse ambiente volátil e intrincado, a opinião corrente, uma vez plantada no senso comum, é uma commodity valiosa e incontornável , que viabiliza ou condena reputações e determina o sucesso ou o insucesso de carreiras e produtos culturais. Como toda mercadoria, a opinião, a qualificação e a cotação artísticas são bens manipuláveis, e esses curadores, até por afinidade, são egressos dos meios intelectuais, e não raro trazem recalques de talentos, de carreiras mediocres ou de incompreensões ( há inclusive vários casos de mentes brilhantes, talentos legítimos, que usaram a crítica como meio de expressão – mas não é essa a regra)  e se tornam portadores de prerrogativas especiais para determinar em qual gaveta da relevância do Mundo serão arquivados os artistas, os pensadores do mundo estético, e as suas obras. Arquivados para a vida toda, são raríssimas as exceções. Os resgates post-mortem são comuns. As mudanças de gavetas são raríssimas, e uma vez indexados no Sistema, os artistas geralmente lutam para melhorar de cela nessas verdadeiras “cadeias culturais” – e como este termo é apropriado !

Tenho me debruçado com prazer e vívido interesse nesse assunto, na boa bibliografia existente, e devorei, neste período sabático de recolhimento, uma porção de e-livros extremamente reveladores…Hobsbawn é meu preferido, disparado, seguido de perto por Eco ( este mais superficial e mais fácil de digerir)… Eric Hobsbawn se transformou numa espécie de irmão mais velho…se é que eu posso tratá-lo assim, porque do alto de sua erudição e de seu texto denso e de lenta absorção ( ainda mais no inglês original, repleto de termos e expressões que merecem e precisam de permanente, imediata tradução…sob risco de prejuizos ) o querido Eric se revela bem humorado e certeiro na sua finíssima mordacidade…Depois que o leitor se habitua a essa densidade e a todo seu refinamento, a coisa muda de conversa. Tantas coisas que já sabíamos passam a ser confirmadas em detalhe e desmistificadas em nossos corações magoados por um mundo até então incompreensível.

O mundo “moderno” da industria cultural se revela muito mais complexo em suas razões, e muito mais simples em seus resultados.

Um resultado imediato e aplicável ao nosso mundo real e contemporâneo, em nossa realidadezinha provincial da musica popular, em nosso vilarejozinho recôndito e esquecidíssimo do mundo, chamado Brasil, é a pergunta que não quer calar : como é que se pôde estabelecer, para a nossa geração da Música, um panteão de Vacas Sagradas cuja Trindade Suprema são poetas não-músicos, enfim, que não manjam nada de música ? Ignorantes totais de sons e instrumentos ? Como é que acontece isso, e, olhando-se bem, não é só no Brasil ? Porque a Música é assim tão maltratada… em nítido benefício de outras modalidades de relevâncias… Preste atenção e você constatará, como eu, que existe uma sutil hierarquia… Muitas vezes, nem tão sutil : descarada.

Para simplificar, e para resumir com sagaz crueldade, vou enumerar aqui a hierarquia de relevância intelectual, entre os “artistas”, magistralmente construída pelo jornalismo cultural.

  1. No topo da cadeia alimentar da Cultura, estariam os Literatos : Escritores, Poetas, Dramaturgos,  e (obviamente, “comme il faut”) os Jornalistas e os Críticos de Arte. Estes últimos, são como os Parlamentares : legislam em causa própria.
  2. A seguir, numa já bem distante segunda categoria, viriam os Publicitários e os  Cineastas ( a Publicidade e a Indústria do Cinema não raro pagaram a conta dos salários da Imprensa, moradora do andar de cima ) Eu diria que esta segunda Classe anda meio “borocoxô” , meio “cambalache”, porque o mundo deu tantas voltas e despencou na mais elementar truculência… Acompanhado de perto pela Publicidade, o Cinema se rendeu à medíocre fábrica de Blockbusters – há muito que o Cinema vive de recordações : O que foi, e em que se tornou !
  3. Na Terceira colocação, vêm os Produtores e Agitadores Culturais, articuladas peças de ligação entre as artesanias e as prateleiras de mercado. Interessantes e descolados, dependem basicamente de personagens e “lendas” que constróem, formando um contingente efervescente nos ambientes culturais, infiltrados nos gabinetes políticos das Programações Culturais, dos Editais , e com trânsito feérico na mondanitè dos bares e points de onde se fabricam tendências, vanguardas, eventos e patrocínios.
  4. Nas galés, no populacho, “na graxa”, sendo portadores de “habilidades práticas, meramente manuais” , sendo adestrados para atividades mais “emburrecedoras” do que a Palavra, Palavra essa que é supremacia do Pensamento, e que por essas atividades paralelas à Palavra, são desprovidos de intelectualidade mais profunda, estão os músicos, desenhistas e pintores, escultores, atores, bailarinos e coreógrafos.

De minha parte, eu agradeço pelo meu talento de fazer minhas letras. Todas. Não dependo de especialistas na Palavra.

A não ser para julgarem o meu artesanato !