Componente Existencial Zero

Estamos em casa, tentando tirar um final de semana de folga, sereno… Como todos sabem, moro na Bahia. Moro num bairro perto da praia, então os finais de semana são alegres e ensolarados. Como em todo país, reina um clima altamente etílico no ar… Carros com sistemas de som potentíssimos progressivamente vão invadindo o ar por toda parte. Vizinhos começam a beber às 9 da manhã e pretendem prosseguir até segunda-feira, então para “dar o clima” aos churrascos, nada melhor do que um sonzinho… Mas que sonzinho, heim ?

Há um significado nesse som alto, além de tornar a vida do vizinho insuportável. É uma invasão deliberada, existe uma afirmação primitiva de território, ali…

Já viajei muito pelo mundo, não existe isso no Japão, na Espanha, nos Estados Unidos, na Inglaterra, em Portugal, me parece que a legislação proíbe. No Brasil, país barulhento por natureza, se tornou costume a competição de volume sonoro, então fica ridículo…

Temos que fugir para o alívio reconfortante do silêncio, em algum lugar… Que fosse alguma música bonita, pelo menos…mas não : é bruta, é grosseira, é feia.

Às vezes me embrenho no emaranhado de conjecturar o que acontece no Brasil de hoje, de tão peculiar, que fez proliferar na arte popular (me diz respeito especialmente na música) um grande mal, que eu chamo de “utilitarismo”. A música popular sempre foi um item de forte identificação nacional. Com a mistura de culturas, os povos da America Latina sempre apresentaram grande riqueza rítmica, melódica e poética, e até ouso dizer , maior do que em qualquer outro Continente. Até os Estados Unidos têm na cultura latina um forte componente flavorizante : seria bem menos atrativo aquele grande país sem a contribuição da latinidade. Desde os inúmeros caribenhos, passando por México, Colômbia, a hoje triste Venezuela, Peru, Chile e Bolívia, são fortes no lançamento de gêneros musicais ricos e saborosos. A Argentina, com suas misturas de cultura europeia com o rico folclore…  No caso específico do Brasil, a harmonia – por força de uma inspiração “francesa” na cultura da República – é  um componente nobre, e que sempre nos diferenciou, se intensificando com a Bossa Nova, graças ao gênio de Tom Jobim e seus contemporâneos. É bem verdade que sempre foi uma nação excludente e perversa. Nos anos 40, por exemplo, havia uma “maioria invisível” às estatísticas.   Eu já sabia disso, intuitivamente, mas nunca tinha prestado muita atenção …

Há uns anos atrás, numa temporada de shows no Bar Brahma, eu ia todas as quartas feiras passar o som, depois voltava à noite pra tocar, e, me hospedando ali perto, virei frequentador… Ali há um mural com uma grande foto da São Paulo dos anos 40, tirada no Largo do Café… Milhares de homens de chapéu, ternos de casimira e de linho… Homens brancos. Pouquissimas mulheres. Nenhum único negro…Esse é o Brasil de Pixinguinha.

Havia, tradicionalmente, no país, uma “cultura dos salões”, aristocrática, e mesmo os expoentes da legítima cultura popular, como Donga, Nelson Cavaquinho, Cartola, Adoniram Barbosa, Cyro Monteiro, apresentavam uma sofisticação elaborada, que agradasse no Rádio e no mundo do Disco. Lembre-se que os toca-discos eram, a princípio, caros, eram objetos da elite. Assim foi com o Rádio e a Televisão : quem quisesse sobreviver, tinha que agradar aos paladares sofisticados dos “salões” da aristocracia… Isso ocorreu nos EUA, por exemplo, no auge do Jazz. Artistas das “periferias e guetos” se infiltrando nas altas rodas : era uma forma nobre de capilaridade social. Eis o segredo da qualidade dessa turma. O pressuposto de uma exigência de erudição.

E assim se consolidou o Samba, se gerou o Samba-Canção, que finalmente desembocou na Bossa Nova, uma moda irresistível  e chique , que varreu o mundo no pós-guerra, quando os americanos “descobriram” o grande irmão do Sul: até o Walt Disney inventou o Zé-Carioca, certamente sob encomenda do governo americano…

A Bossa Nova era a bola da vez no mundo, e foi avassaladora, invadindo todas as festas regadas a White Horse, Old Parr, Cuba Libre e cigarros, e só foi ultrapassada com o surgimento dos Beatles, em 62 : começava ali a era da maconha, costume já de uma outra geração…

O caminho percorrido pela tão propalada “Linha Evolutiva” de Caetano, daí pra frente, é sobejamente conhecido, e não carece ser relembrado aqui.

O que marca profundamente a música popular dos anos 30, 40, 50, 60, 70 e 80, é um certo “componente existencial”

Fosse o gênero que fosse, com todas as nuances entre a pura vanguarda e a mera diversão, sempre havia por trás essa busca pela individuação da pessoa humana.

Trazer alegria, melancolia, fazer a crítica, o deboche, evocar ideologia, ou até rancor, não importa : o importante seria penetrar na vida sensível do ser humano.

Encurtando essa prosa, quando chegamos ao momento atual, percebemos que houve um empobrecimento profundo na forma com a qual a música popular é utilizada pela maioria da população, e isso especificamente no Brasil. Isto é o momento que vivemos, um suplício para quem não está integrado ao movimento majoritário, que é “a balada”: um estado primitivo de embrutecimento cerebral, “engazopamento” auditivo, pano de fundo para um comportamento grosseiro que, via de regra, remete à celebração coletiva de um “clima de azaração”. Em nome da eficiência objetiva em grandes eventos do show-business, a música se torna utilitária. O importante é funcionar naquele contexto, e muitos são especialistas, mas as fórmulas viram uma prisão.

Não é só festa esse tipo de som, em todas as vertentes. Festa é o que o mundo gosta, sempre existiu, não há problema algum com a festa, ou com o mero entretenimento despreocupado. O problema começa quando é mandatória uma negação de qualquer sentimento mais elaborado ou profundo, um estado de brutalismo deliberado, voltado ao mais rasteiro utilitarismo funcional.

Não quero aqui tecer loas à delicadeza na arte, aos louvores diáfanos: estes também podem ser meramente utilitários e anódinos.  Longe disso:  a arte também pode ter nuances violentas, brutais, e o bom e velho Heavy Metal não me deixa mentir… Pode até descambar para o satanismo, ao brutalismo total, à escatologia, sem o menor problema : as celebrações e “ritos” vêm carregados de questionamento sobre a existência, são instigantes !

Esse componente existencial e emotivo ao qual me  refiro não é, absolutamente, coisa do passado… Ainda persiste, por exemplo, na cultura pop do mundo: os grandes sucessos de massas da hegemonia Anglo-Americana na música, por conta de um mundo que se tornou anglófono… ( por sinal, hoje em dia, irritantemente globalizado, onde você for, ouvirá os mesmos nomes, consumirá as mesmas grifes e produtos, verá os mesmos filmes ) . Mas a qualidade está lá.  Não se tenta vender porcaria, ao menos “via de regra”, a porcaria como critério seletivo…

Não existe o orgulho da falta de qualidade.  Há pungência nas vozes, há questionamentos nas letras, há uma busca de inovação nas sonoridades, por mais “fashions and trends” que sejam a cada temporada, há um culto à originalidade nas “levadas”, uma valoração do inusitado, seja nos arranjos acústicos ou nas programações eletrônicas.

Aqui, não. O que é pra ser “bizarro” se torna repetitivo em fórmulas , chato pra cacete ! E as letras … !@#$%&)#!!!!

Pra quem (como eu) um dia pegou coqueluches como a explosão de “Trem das Onze” , fica difícil… Pra quem (como eu) pode curtir o resto da vida a excelência universal de um Luiz Gonzaga, outro sucesso de assustadora potência, fica evidente que se construiu forte tradição na cultura genuinamente popular, uma mas o “mercado” artificializado com investimentos “alienígenas” à música, se caricaturizou, hoje é muito mais visual e marqueteiro do que sonoro. O som é o de menos. O público protagonista está ali para “se filmar na balada“, o artista é um mero coadjuvante, pode ser qualquer coisa que não faz diferença. É só o batidão, pano de fundo…

Mas parece que o objetivo “atual” é esse : ser tão achatado , que se torna bem-comportado , careta e chato.

Dessa forma, hoje, o Brasil é uma nação isolada. A graça toda, nesse grande movimento boçalóide que perversamente aprisiona os espíritos jovens numa redoma de ignorância, (e não só da vida real, mas também – pior – a ignorância de qualquer delírio – uma prisão voluntária) está justamente na esculhambação, na tentativa de ser transgressora de qualquer valor qualitativo : quanto pior for, quanto mais baixo levar na escala do emburrecimento, mais resultados colherá. A massa acha engraçado ser “peba”, existe uma afirmação de inferioridade identitária nesse “riso”, vigora um espírito de “nóis semo tatú...”
E é curioso que parte significativa dessa galera, uma garotada aderente a modas, quando tem grana, lota os grandes shows internacionais, shows com qualidade explícita, e lá se comporta de forma totalmente diferente… adoram as músicas, gostam das letras…. Acham tudo “superior”. Simplesmente, porque é importado, ou pior : pega mal não achar legal !

Mas então não têm senso de nada ? Engolem o que vier ?

O utilitarismo é, pois, um antídoto articulado e proposital contra qualquer componente existencial.

Existe vida, na música do Brasil de hoje ?

Sim, existe, sim, muita vida, pelas beiradas, nas vanguardas, no bom samba, no bom rock, na boa mpb, no bom pop, no bom rap, no bom funk, no bom blues, no bom reggae, no bom dub, no bom forró, no bom axé, no bom sertanejo, na boa eletronica, no bom hiphop, na boa cumbia, no bom regaton, no bom tudo…pode ser o que for, basta que seja bom, é pedir muito?

Existe sim, o idealismo dos que são sábios e lutam contra a corrente dos zumbís.

Agora, já é segunda feira, o “clima de festa” acabou, o povo está de ressaca, então já podemos voltar pra casa.