London -LA e a Rota do Ártico

 

As viagens para gravações sempre foram um algo mais na rotina artística. Estar num local diferente, gerando nessas temporadas um trabalho definido, com inicio, meio e fim, é uma experiência especial, pois o trabalho vem impregnado de “ares”, de histórias como estas, impressas pra sempre no produto e nas nossas vidas…E é por isso que acabei montando um lugar pra isso, o Coaxo do Sapo…Lá no futuro, veremos se eu não tinha razão…Os discos deveriam sempre vir acompanhados de lendas. Lendas verdadeiras é que contam, contando vidas. Penso que os discos, simplesmente como “produtos” são na maior parte das vezes supérfluos. O que vale é o valor agregado. Mas voltando a viagens e peripécias, tenho muitas ainda a contar. Pois no período “maldito” dos anos 90 tive mais duas oportunidades da mesma natureza. Digo que os 90 foram “malditos” porque foram mesmo uma purgação para a nossa geração 80, com a ascensão de três novas vertentes de gosto popular, o axé, o pagode e o sertanejo. Mais uma vez contextualizo explicando que era um processo previsível de acontecer. A replicação digital, 20 vezes mais rápida que a dos vinis, traria na indústria a exigência de artistas que vendessem não dezenas, centenas de milhares, mas milhões de cópias. O gosto popular dominaria a cena, e não vou me alongar aqui, e nem qualificar nada. O Brasil não ficaria parado na geração 80, classe média urbana do eixo RJ-SP. Novas cenas entravam como players, a Bahia moderna, a Minas moderna, o Centro Oeste emergente, as periferias, as inclusões. Era tudo natural de acontecer, e a nossa geração teria que “rebolar” para competir num mercado muito maior e agressivo. Desanimado com o declínio das vacas gordas, de um longo reinado, propus para o velho Maynard, agora presidindo a Polygram ( futura Universal ) um “disco de descanso” composicional, pra guardar as idéias novas pra um momento mais favorável. Eu tinha muitas referências dos anos 60 e 70, e muitas obras-primas que eu gostava de cantar formavam um repertório pessoal , intransferível. Fazer “cover”, nem pensar, sempre fui alérgico ao “cover”…Mas me aventurei a verter algumas canções que eu adorava, com capricho, do meu jeito, mantendo ao máximo o sentido original das letras …”Morning has Broken”, de Cat Stevens, My Cherie Amour de Stevie Wonder e It´s too late , de Carole King, foram as primeiras. Maynard e Max Pierre se empolgaram logo de cara, e escreví o restante das versões, convidando meu parceiro Costa Netto pra fazer “Traces” dos Classics IV – que virou “Trilhas”, e Nelson Motta pra fazer “Alone Again”, do meu ancestralíssimo ídolo irlandês Gilbert O´Sullivan. A gravadora sugeriu também o mestre Aldir Blanc ( e eu adorei ) pra escrever a versão de “Cherish” do grupo The Association…Bem, o repertório era só caroço grande…Me lembro de ter, de propósito, excluído Elton John, por mais que insistissem em “My Song” (eu achava que este renderia um álbum à parte, talvez até duplo, triplo…) , bem como Beatles ( esses , então….sem comentários ) . E só não verti “A whiter shade of pale” do Procol Harum porque a letra original é muito difícil de sugerir qualquer sentido, ficaria péssima, além do que a minha interpretação ao órgão, modéstia à parte, é tão leal, mas fica tão boa, que guardei pra um dia mostrar para as pessoas… Bem… com esse repertório, a dupla de executivos ( Marcos e Max ) decidiu bisar a fórmula vitoriosa de Bethânia cantando Roberto – produção do querido Guto Graça Mello, arranjos e regências do maestro Graham Preskett, gravações nos estúdios CTS, que ficavam onde ? onde ? Londres. As bases seriam feitas no Brasil, então fizemos no Mosh, eu no piano Steinway, Cezinha na bateria e Pedro Ivo no baixo, uma cozinha impecável. E lá fui eu para a charmosa capital britânica. A cidade eu já conhecia desde 90, quando fui pela primeira vez me aventurar, levando uma música minha e do Nelson Motta ( “Ready for Love” ) especialmente para a cantora Lisa Stansfield – aquela do “All around the world yá yá yá” – ( que não gravou, claro, embora deveria ser mais antenada, e ter prestado mais atenção pois não era só um Guilherme Arantes, mas era um GA combinado com um Nelson Motta – mas acho que nunca ouviu falar da gente…pena…ficou só no Ya Ya Ya…). Essa música é um hit internacional de uma dupla matadora, e um dia vai acontecer. O tempo é uma ilusão.
Voltando nesse tempo, me hospedei no mesmo apartamento da outra vez, bonitinho, art nouveau com piano de cauda na sala, cedido pelo querido amigo (um pianista genial), o concertista Marcelo Bratke…em Knightsbridge, a região mais chique de London, perto do Harrod´s, Sloane Square, Belgravia, as maisonettes, a metros do Hyde Park, que lugar lindo… os bancos sóbrios de carvalho, os lagos cheios de patos gordões, a Serpentine, o Round Pond, O “Lido”, os Italian Gardens, as flores do Palácio de Kensington…uma viagem colorida, bem inglesa. Adorei de cara os pints-of-a-lager ( copões de chopp escuro Guiness ) mas eu estava de regime radical, e tinha que segurar a comida pra perder peso. ( Já me sentindo velho aos 40, me achando obeso e precisando de uma repaginada, eu corria todo dia uns 12 km no parque, me pesava na balança da “rainha”, uma moeda de meia libra antes e outra depois da corrida…Perdí, ao final da viagem, 15 quilos e voltei magéééérrimo, chique no úrtimo pra minha nova fase “européia…” tsic, tsic, manias…) Musicalmente, foi um banho esse trabalho. Graham Preskett era um cavalheiro, meio maluco, muito firme para liderar uma orquestra exigente, com as seções de cordas e madeiras do Royal Philarmonic…O estúdio CTS, do lado do velho estádio de Wembley, tinha uma sala com pé direito – juro – com uns 20 metros de altura, e refletores acústicos monstruosos, proporcionando um som já reverberado de Grand Concerto, incrível…O Spalla, Gavyn, era um rapaz novo ainda, infernal no seu violino, dominava a imensa orquestra totalmente. A afinação daquela gente, o “waving” corporal da seção de cordas, a coesão, interpretação magistral, articulação impecável, os arcos se moviam como num sonho. Eu não acreditava. Olhava para o Guto e as lágrimas desciam, eu fiquei num estado indescritível… Tenho os tapes em vídeo disso, em breve vou disponibilizar pras pessoas verem o que foi isso. Ao final das gravações de orquestra, Guto fez algumas mixagens no CTS mesmo, e eu acabei ficando em Londres os meses de maio, junho, julho, agosto, setembro e parte de outubro de 94. Ví o final do inverno, a primavera florir os parques, o verão chegar com uma canícula de Terezina, o calor ir embora, o outono pintar as árvores de bege e marron, as folhas caindo…e a grana já havia acabado há meses, fiquei durango, só comendo Lamen no China Town…( uma sopa de verduras com macarrão ). Aproveitei pra ver o Prince no Earl´s Court 11 noites, em 11 lugares diferentes na platéia, incluindo um “gargarejão” caríssimo aos pés do ídolo, de cara para uma pedaleira revestida em pele de carneiro…Era a tour “Diamonds and Pearls”…Gênio. Pra mim, não tem pra ninguém, nunca vai ter igual, e ponto. Fui também a uma roubada, com ingresso caríssimo, uma luta de box, do ídolo inglês Lennox Lewis contra Oliver McCall, no Ginásio de Wembley, perto do CTS. Comi o pão com linguiça, tomei vários “pints” pra entrar no clima do povão. A luta começou e a ovação era total “Lewis ! Lewis! ecoando no ginásio…um minuto e meio de luta. Lewis no chão. Silencio no metrô, foi a coisa mais fúnebre que eu vi na vida…Unbelievable… Nesse meio tempo, fiz a foto da capa do disco com um garoto, Richard Croft, muito simpático. Fomos a um estúdio de várias salas com teto de vidro , luz natural, e estava acontecendo uma produção com a modelo Kate Moss, amiga dele, a quem tive a honra de cumprimentar…Esse Richard Croft e a namorada, amigos do cantor Seal que é o maior boa-praça – foram meus dois únicos amigos em Londres, nessa viagem, no mais fiquei mesmo uns 4 meses sem trocar uma única palavra com nenhum ser humano. Período sabático, heim ? Mas uma “aventura” bem cara-de-pau de brasucão eu aprontei pra quebrar a rotina: fui várias vezes até os portões do Palácio de Kensington, pra ver a Princesa Diana…Ela saía religiosamente às 7:15 da manhã, levando os filhos ( William e Harry ) pra escola, e eu acordava cedo e passava por ali, nas corridas…Um dia tomei coragem e fui conversar com o guarda. Perguntei se, eu sendo um ”Elton John” brasileiro, misturado com Tom Jobim, um popstar, eu não poderia entregar um pacote de discos meus ( já existia o CD ) para a Princesa. Um pacote de CDs para o guarda, somado a 4 meses de amizade e insistência, um dia o portão se abriu, finalmente pude cumprimentar Diana. Inesquecível. Coisas que o dinheiro jamais vai comprar. Só a inocência, o sonho. Quando Max Pierre me ligou, solicitando que eu fosse para Los Angeles terminar o disco com ele e o famoso engenheiro Moog Canazio , foi um alívio, pois a minha solidão estava estarrecedora em Londres. Fiz a viagem, Londres-Los Angeles pela British Airlines, por cima do Pólo Norte, Alaska, das Montanhas Rochosas…uma visão incrível de um outro planeta que eu desconhecia. Descer em Los Angeles foi só alegria. A América ! Estava em casa de novo…Ao menos me senti num ambiente bem mais familiar….Max me hospedou no Sofitel, em Beverly Hills, fez “lockout” no famoso Westlake Audio ( onde Michael Jackson fez o Thriller ) e trouxe dois músicos complementares, o percussionista Tim Pierce e o maravilhoso guitarrista Michael Fisher, que fez um trabalho magistral. O disco ficou com outra cara, ainda muito mais bonito do que já estava… Pude conhecer Rodeo Drive, e, estando com o requintado Max, tirar a barriga da miséria em bons restaurantes ( depois de 4 meses de Lamen ) vivenciar toda uma parte glamurosa de LA, ( da primeira vez em LA, com Ronnie, a produção era mais modesta, e eu não tinha tido oportunidade de conhecer…) Só voltei pra casa em Novembro…7 meses fora de casa, pra fazer um disco, é um exagero! Quando entrei de novo em casa, me perguntei : – É aqui mesmo que eu moro ? Este é o meu lar? O meu piano ? O disco , “Classicos” não foi nem tão mal, mas não foi tão bem quanto eu esperei. Ficou, sim, como uma produção primorosa, mas era um disco de versões…enfim, valeu !
Mas eu voltaria uma vez mais para a gostosa Califórnia, no ano de 96, gravar o cd “Outras Cores”. Novamente pela Polygram, com Maynard e Max na direção, de volta à produção de Ronnie Foster, gravamos no estúdio da casa nova dele, em Conejo Valley , Thousand Oaks, já meio fora de Los Angeles…Fiquei dessa vez em Woodland Hills, no Oakwood Apartments da Topanga Canyon Boulevard. Foi uma outra temporada longa, de Março a Julho de 96, beirando o insuportável de solidão. Quando eu fui, esse disco já estava bem mais estruturado ( ainda em “Adats”) e Ronnie convidou novamente o mago Jorge Del Barrio pra escrever as cordas, Jimmy Johnson pra fazer alguns dos baixos, um outro baixista, o Stan Sargeant pra fazer duas musicas, um batera muito bom, meio latin fusion, o Curt Bisquera, trouxe um outro cubano incrível, o Luis Conte em ótimas percussões, e um guitarrista excepcional, também com forte acento latino, o Mike Thompson, cujo portfolio inclui gravações com Madonna, Cher, Celine Dion, Babyface, Phil Collins, En Vogue, Toni Braxton, entre muuuitos outros…Pois não é que esse Mike também me deu uma força danada, dizendo que eu compunha muito bem…Os passeios pela costa Norte da Califórnia foram mágicos. Descendo o Topanga Canyon me senti num desenho animado, pura Hanna Barbera. Adorei as praias, Malibu, Santa Monica, pude nadar com um mar gelado cheio de sargaços, golfinhos brincando no raso, junto das crianças… e a encantadora Santa Bárbara, com seu “píer” e suas construções em estilo espanhol…Ah, a California é linda mesmo…Nessa estada em LA, tem uma parte muito especial pra mim : fui, outra vez cara-de-pau, conhecer e ter aulas vocais com o mítico Seth Riggs, em Beverly Hills. Simplesmente o coach vocal de Michael Jackson. O maior professor de canto do planeta. Pra não ficar esnobe, nem vou citar aqui todos os astros que estudaram com Seth, um senhor muito engraçado, espirituoso, piadista. Muito caro, também. Tive aulas de 15 minutos ( era o que eu podia pagar ) três vezes por semana, durante três meses. Seth foi muito enfático pra que eu não artificializasse minha voz, com excessos de técnica. Me explicou o quanto um compositor-pianista precisa ter um timbre muito natural e pessoal, sem muito enfeite, pra poder “vender” bem as canções de sua autoria. Isso me pareceu intuitivo, sempre acreditei nisso… Seth Riggs dizia que minha voz era rica em harmônicos e com bastante “edge”, e adorava me ouvir cantar “Um dia, Um Adeus”, “Amanhã” e “Planeta Água”. Um professor muito eficiente, que me passou muita, mas muita auto-confiança. Nunca vou me esquecer disso tudo. É a minha vida.

( 4 de Outubro de 2013 )